Em minha vida uma Malandrinha
Há cerca de dezenove anos atrás,
eu tinha dez anos, quando a minha mãe foi ao açougue comprar um bendito de um frango e lá
começou a conversar com outra mulher, também mãe. Do meio para o fim da
conversa, essa mulher lhe disseque havia se tornado evangélica e queria ir a uma
igreja para visitar. E foi aí que minha mãe indicou a igreja que frequentava,
no bairro.
Eu
nem sabia dessa conversa até um dias desses. No domingo fui à igreja, era dia de batismo e iríamos
todos num ônibus fretado para uma igreja no centro da cidade. Vi que se
aproximava uma mulher e seus dois filhos, uma menina mais ou menos da minha
idade, de olhos muito vivos (foi o que mais me chamou atenção) e um garotinho.
Eles vieram para o culto, mas como não haveria naquele dia, a senhora disse que
voltaria em outra oportunidade.
Dias
depois eles voltaram à igreja, em outro domingo de manhã. Naquela época eu
ajudava na classe das crianças, na Escola Bíblica Dominical, era uma espécie de
“líder” e adorava dar ordens e me sentir útil, eu nem sabia, mas os primeiros
vestígios de docência já apareciam em minhas práticas. Foi então que a menina
de olhos vivos (e enormes) veio para a classe. Naquela manhã eu odiei a EBD (Escola Bíblica Dominical). “Que
menina mais chata”, pensava eu, já que a menina falava mais que eu mesma e
também era muito inteligente (das modéstias...risos). Da antipatia para uma intensa amizade foi
ligeiro. Nos tornamos amigas e ano a ano a amizade crescia.
Me
lembro das tardes de domingo em que levava minha caixa de brinquedos para a
casa da menina. Sempre fui muito bem recebida por sua mãe, uma mulher de fibra
e de fé. Naquele tempo eu não entendia muita coisa, mas foram tantas amizades,
aventuras, histórias e pentelhagens a compartilhar que nossas mães se
confundiam, cada hora uma aparecia para reclamar de nossos comportamentos nada
comuns para garotas de 12, 13, 14, 15 anos! Chegamos a era dos namoros...Ah,
quantas boas lembranças trago na memória afetiva.
Crescemos
juntas. Aquela menina magrela junto comigo foi se tornando mulher. Com ela e
sua pequena família vivenciei momentos de descoberta e um lado mais leve e
amoroso da vida. Fui agregada e hoje costume dizer que se brincar de tanta
amizade, até o sangue já deve ser o mesmo. Em tempos de faculdade nos
afastamos. Ela foi morar fora, eu fiquei estudando na cidade. Seguimos caminhos
diferentes sem que precisássemos nos afastar.
Já mulher
percebi que sua mãe, aquela senhora que sempre admirei e respeitei, já não era
a mãe da minha melhor amiga, havia se tornado uma amiga, companheira de festas,
alegrias, momentos iluminados que perpassam agora pelos fios de minhas
recordações. Com ela pude cantar até ficar cansada e sem voz a Malandrinha de Edson
Gomes, comemorar vitórias, pedir conselhos, ouvir reclamações e exortações
importantes. Ela me tratou como filha e como tal, não passava a mão pela
cabeça, não facilitava nada. Acredito que poucas tiveram tanta sorte como eu na
vida. Encontrei amigos na caminhada, me enriqueceram, me fizeram ser mais gente
e buscar o bem coletivo, mas o melhor de tudo isso: me ensinaram a amar, a resgatar
minha autoestima e acreditar em mim mesma, coisa muito fácil, mas não no meu
contexto de vida, tão cheio de dilemas e complexos familiares que venci graças ás
pessoas que me fortaleceram no caminhar.
Essa mulher se
foi há quatro dias. Perdi a mãe da minha amiga, agora órfã. Perdi uma grande
amiga, um ícone, exemplo e referência de mulher empoderada, de vanguarda,
feliz...Eu conheci e fui feliz com uma pessoa que viveu a vida intensamente, batalhou,
que nunca se rendeu e que lutou até o fim, uma luta desleal, mas que enfrentou
com dignidade. E ela se foi na minha frente, em meio aos bate papos de sempre.
Deixou de respirar, o coração parou e ela se foi num piscar de olhos. Eu não
queria acreditar, eu não queria aceitar que acontecia ali, naquele momento em
que falávamos sobre tantas possibilidades... E quando ela se foi, parece que eu
nasci, ou renasci, não sei bem. Mas as coisas mudaram mais do que nunca.
É a segunda
vez que a morte me acerta. Primeiro foi meu avô, meu avozinho que se foi e a
partir de então aprendi o que de fato é a saudade. E agora, lá se foi a
Malandrinha, com seu sorriso largo, suas belas pernas, ela era um raio de sol!
E foi naquele momento em que a vi sem respirar, sem sangue a circular, que eu
tive a certeza: nada acaba aqui, há sim um plano espiritual e talvez a morte
seja apenas a libertação de um corpo físico doente, limitado, passageiro. Que
logo vira pó e retorna a terra.
O certo é que,
enquanto ela não mais respirava, brotava em mim um novo fôlego de vida. Vida
essa que quero compartilhar com a minha amiga, a menina de olhos vivos e que
herdou as belas pernas e o sorriso da mãe. Na verdade, sinto o amor brotando
com tanta força em meu coração, que o tempo é pouco para tanto. A vida é agora.
A hora é agora para amar a quem amamos. Correr atrás dos sonhos e viver em
plenitude, sorrir de verdade e amar...amar de verdade!
A Malandrinha
me ensinou tanto! Tivemos tempo para nos despedir, pouco a pouco ela se
foi...Até que nós a liberamos desse sofrimento terreno. Me lembro bem da
conversa mais longa da minha vida, durou poucos minutos, mas valeu por toda a
minha vida. E agradeço porque há muitos anos atrás minha mãe indicou que ela fosse
a nossa igreja e que essa família adentrasse na minha vida para mudar as minhas
perspectivas. Agora entendo que foram presentes enviados por Deus! Por mais que eu escreva (é deveras difícil mediante a tanta
emoção), as palavras não são suficientes para mensurar um mínimo do que eu vivi
ao lado da eterna Malandrinha, ei de encontrá-la ainda, só não sei quando. Por ora, sigamos vencendo a dor e vivendo com mais coragem e desprendimento.
E a vida prega dessas peças...Leva uns, faz nascer outros, se renova. A Malandrinha se vai e sua ida me ensina tanto...Estou tirando da dor o aprendizado para qualificar a minha vida, ser mais grata. Jamais vou esquecê-la, isso seria impossível. O mais bacana de tudo é que não existem arrependimentos, tudo foi dito e vivido em sua intensidade. Tive tempo de dizer a ela tudo isso que agora escrevo e receber em troca um " Tu é linda Ana Paula, eu te amo, viu?". Como não amar alguém assim, que chega à terra pra nos dar amor? Inesquecível! "Pois não havia chance alguma de um dia você ser minha, ah...Malandrinha..."
A música que ela tanto amava...dançamos tantas vezes...e cantamos também...Obrigada Deus, por tantas dádivas!
O sorriso mais lindo e escancarado que já conheci...
"A"s melhores viagens foram com ela...
Ela me agregou à sua família e me fez conhecer tantas pessoas especiais...
Ela deixou pra mim a amiga-irmã mais maravilhosa do universo que é pra gente se cuidar.
Amo você daqui até a eternidade Marly Fernandes!
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